Cura do homem da mão seca

Uma outra vez, Jesus entrou na sinagoga,
e lá estava um homem com a mão seca.
Eles observavam se o curaria num dia de sábado,
a fim de acusá-lo.

Jesus disse ao homem da mão seca:
“Levanta-te! Vem para o meio!” e perguntou-lhes:
“Em dia de sábado, que é permitido,
fazer o bem ou fazer o mal,
salvar uma vida ou matar?”

Eles ficaram calados.
Passando sobre eles um olhar irritado,
e entristecido porque eram tão fechados,
disse ao homem:
“Estende a mão!” ele estendeu, e a mão ficou curada.

Saindo dali, imediatamente os fariseus,
com os herodianos, tomaram a decisão de matar Jesus.

(Mc 3, 1-6)

Reflexão

O trecho do Evangelho acima, na narrativa de Marcos, revela alguns detalhes que podem passar despercebidos à primeira vista. Trata-se de mais uma cura de Jesus, misericordioso e solidário com o sofrimento humano? Receio que não seja apenas isso.

Jesus entra na sinagoga, local de reunião, estudo e oração da comunidade judaica. Nela estava um homem de mão atrofiada. Ora, naquele tempo a doença e a desgraça eram associadas ao pecado (aliás, como, lamentavelmente, ainda fazem alguns intérpretes mais literais da Bíblia mesmo hoje em dia). Se alguém era portador de enfermidade, logo se associava que se tratava de um justo castigo divino porque tal pessoa abandonara os caminhos do Senhor que retamente lhe aplicara a merecida punição. Assim, tratava-se aquele homem de mão seca de um pecador, no sentido mais frio que o termo possa assumir.

E mais. Lucas, em sua narrativa do mesmo episódio, diz que a mão atrofiada era a direita. Podemos supor, a não ser que se tratasse de um canhoto (situação relativamente improvável), que aquele homem era, além do mais, um à toa ou pior, um incapaz, pois não conseguia trabalhar, tendo sua mão principal, a destra, atrofiada. Dupla razão para preconceito: desgraçado por Deus, devido à sua doença, e inútil para a sociedade, pois não conseguia trabalhar, ao menos em um emprego “mais digno”. Por isso, esse homem, mesmo presente na sinagoga, sentava-se afastado, talvez nos últimos lugares, sentindo-se indigno e desprezado pelos demais, especialmente pelos que se consideravam mais amados e mais favorecidos por Deus.

Mas Jesus o chama. Significativas são a forma (ordem expressa) e as palavras utilizadas pelo Mestre: “Levanta-te! Vem para o meio!”. Levantar-se, aqui, significa não apenas o ficar fisicamente em pé mas, ao mandar fazê-lo, Jesus quer restituir-lhe algo mais que uma mão sadia: sua dignidade. A ordem de Jesus soa como: “Levanta a cabeça! Eu estou contigo! Tu és precioso aos meus olhos!”. E mais: “Vem para o centro!”. Para Jesus aquele homem, mesmo considerado pecador e improdutivo pela sociedade, não deveria ficar à margem na sinagoga, mas era alguém tão merecedor de um “lugar ao sol”, de um assento melhor na comunidade quanto qualquer outro.

Jesus não gosta de exclusão, muito menos numa casa de oração. Para Ele não deve haver secção, tratamento diferenciado, pessoas de diferentes níveis. Por isso o “Vem para o centro!”. É algo como “Toma este lugar, pois em minha casa todos são iguais!” Além do mais, dirá o Mestre em outra passagem: “Eu vim não para os justos mas para os pecadores”. Se há preferidos para Jesus estes são os pobres, os excluídos, os marginalizados, os abandonados. Com estas duas ordens diretas “Levanta-te! Vem para o centro!”, invertendo toda lógica do farisaísmo, que privilegia a aparência e o status, Jesus resgata algo que aquele homem há muito havia perdido: sua dignidade, seu valor.

Os fariseus, então, observavam para ver se aquele Rabi curaria em dia de sábado. O questionamento de Jesus afeta precisamente a visão de religião dos fariseus: o que é mais importante: o cumprimento cego da lei ou a salvação das pessoas e a prática do bem? Esta era a grande questão com os fariseus, zelosos cumpridores da Torá, mas que não viam que por detrás da letra da lei está o bem do homem, a promoção da justiça, a solidariedade e a fraternidade.

Lendo os seus corações e por ver que para eles o mais importante não é o destinatário da Lei, o próprio homem, mas a Lei pela Lei, Jesus lança sobre eles um olhar irritado e fica entristecido com a dureza de seus corações. Em outras traduções da Bíblia lê-se, ao invés de “irritado”, o termo “indignado”. A visão de religião e de sociedade dos fariseus, que considerava mais importante o cumprimento cego da lei, mesmo que isso implicasse em deixar alguém sofrer ou mesmo morrer, deixava Jesus extremamente aborrecido. Jesus fica literalmente indignado e triste com a dureza daqueles corações.

Se quisermos ser iguais ao Mestre, esses dois termos, ficar indignados e entristecidos, também devem estar cravados nos nossos corações. Diante de situações equivalentes, em que o homem é desprezado, ferido em sua dignidade, excluído ou marginalizado por quem quer que seja (pessoa, sistema, sociedade ou lei) deve o verdadeiro seguidor de Cristo ficar também irritado, indignado e triste.

Trata-se do reverso da contemplação. O louvor a Deus, o encantar-se e admirar-se pela sua grandeza e pela beleza e maravilha de Suas obras, enfim, a atitude de levantarmos nossos braços para bendizer ao Senhor deve igualmente ser contrabalançada pela postura de indignação e de tristeza ao vermos a obra-prima de Sua criação, Sua imagem e semelhança, o próprio homem, atingido em seu valor e dignidade. Assim, o movimento de levantar os braços aos céus em louvor e adoração a Deus deve ser acompanhado do abaixar os braços e meter a mão na massa, lutar contra a injustiça, denunciar os esquemas corruptos e perversos que maltratam e humilham o homem. Caso contrário, nossa religião está condenada a se parecer com aquilo que Jesus mais lutou contra, uma religião farisaica, superficial, de cumprimento de normas frias e estéreis, mas que estão, na realidade, distante do homem e da verdadeira intenção de Deus: salvá-lo e promovê-lo.

O entendimento de religião pelos fariseus revela um enorme fatalismo: se alguém é nascido com determinado defeito ou característica que o destoa negativamente dos demais, está aí demonstrado o desprezo divino. O homem, então, é visto de forma estática, como que lançado pela “justiça do alto” em uma casta da qual não poderá sair, a não ser por intervenção direta do céu. Assim era aquele homem da mão seca. Se estava em tal situação (de desgraça), era ali que deveria permanecer. Ao passo que Jesus vê nele o que há de essencial, não sua mão ou outro detalhe qualquer que possa servir de rótulo à sociedade. Para Jesus aquele com a mão seca era, antes de tudo, um homem e, por isso, seu irmão. E precisamente por ser seu irmão é que merece, a despeito de qualquer estado físico, afetivo ou psicológico, ser amado, salvo e liberto.

A falta de misericórdia dos fariseus para com aquele de mão atrofiada nasce da dificuldade de vê-lo como seu semelhante, da mesma forma que temos de ver o outro, por nós considerado pecador, como semelhante (daí o ódio, a repulsa e a sede de vingança por alguém que cometeu um enorme pecado ou atrocidade). Para a elite judaica, detentora de enormes privilégios e do “beneplácito divino”, não era possível se identificar com um homem torto, “marcado por Deus”. Via, por isso, naquele indivíduo um ser diferente, inferior, incapaz, impuro. Jesus, ao invés, via nele a imagem e a semelhança de Deus, ainda que desprezado por uma sociedade que, ao seu ver, agia segundo a vontade do próprio Deus. E dói no fundo do coração de Jesus a prática religiosa de se utilizar do argumento da predileção divina para dominar, excluir e maltratar o outro. Daí seu olhar indignado e entristecido pela dureza e frieza daqueles corações.

O Mestre rompe com os rótulos, desce mais profundamente no ser, vai além da aparência. Não importa, num primeiro momento, o que o homem fez de errado, que pecado cometeu, se tem este ou aquele defeito ou “marca do céu”. Jesus quer é resgatá-lo. Isso é o que importa. Enquanto os fariseus julgam o comportamento e a aparência (o circunstancial), Jesus olha a pessoa (o essencial). Por isso, ele redime, atinge em cheio o coração do homem. Ele vai atrás da ovelha perdida, abandonada, desprezada pelas demais, ao invés de puni-la, como faziam os fariseus, com o abandono, a exclusão e o preconceito que apenas apartam e segregam.

Jesus quer mais que operar um milagre, mas resgatar o homem de tudo aquilo que o oprime. Porque o Cristo lutou contra tudo isso, questionou os valores, subverteu a ordem estabelecida, atingiu em cheio a posição de destaque e de predileção dos fariseus, Ele incomodou. E por isso queriam matá-lo. Eis aí outra característica do discípulo do Mestre: sofrer perseguição. É uma excelente forma de aferirmos se nossa prática da religião está verdadeiramente em conformidade com os ensinamentos de Jesus. Porque a luz incomoda as trevas. A verdadeira prática do Evangelho se traduz em atitudes concretas de libertação que implicam em incomodar e, por isso, em sofrer perseguição. Não uma perseguição qualquer, mas sim aquela que nasce do incomodar estruturas e condicionamentos injustos e cruéis fortemente estabelecidos na sociedade. Se nossa prática cristã não incomoda, não questiona, não denuncia, não atinge as estruturas de injustiça, não vai contra os poderosos que oprimem e humilham os outros, mas apenas se conforma em durante a missa ou culto levantarmos as mãos aos céus e louvar e bendizer ao Senhor, estamos enganando-nos a nós mesmos se achamos que com isso somos cristãos ou agradamos a Deus.

Cura do homem de mão atrofiada. Aparentemente, uma passagem simples do Evangelho; à primeira vista, mais uma cura de Jesus. Mas que, ao ser analisada, revela bem o verdadeiro sentido da salvação operada pelo Mestre. Oxalá este exemplo liberte nossa prática religiosa do farisaísmo, cega às reais necessidades do outro, de modo que se torne, da mesma forma que é voltada ao louvor e à contemplação, mais dedicada à promoção da justiça e da solidariedade para que a obra-prima da criação, o próprio homem, se encontre, sem exceção, como quis Jesus, definitiva e verdadeiramente liberta e, acima de tudo, de pé e no centro.

Published in: on 23/03/2010 at 13:03  Comments (2)  
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2 ComentáriosDeixe um comentário

  1. Interpretação maravilhosa!

  2. Quão profunda e cheia de misericórdia a palavra de Jesus.ELE cheio de humanidade e profundamente encarnado nos mostra o Caminho que nos leva a Sua verdade que nos liberta de todo preconceito e nos aproxima Dele.Por isso damos graças!


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